Costumava fazer uma reflexão com meus alunos na época em que fui professora de E.R. acerca da hipocrisia do amor e da fraternidade entre aqueles religiosos que se julgam bons. Na verdade eu questionava a coerência entre discurso e ação das pessoas no que diz respeito a virtude, utilizando como cenário a ideia do veredito eterno divino. Supondo que seja verdadeira a teoria de que haverá um juízo final e que aqueles que não forem "bons" o suficiente serão condenados a purgar eternamente no inferno ou sei lá onde. Ou passarão por um período na churrasqueira cósmica do Capeta (como bem descreve minha querida filósofa Lourdes Santos) até que entrem na linha, ou seja, que se encaixem no modelo judaico cristão de virtude e possam merecer o paraíso eterno.
Sugeria que pensassem na hipótese de que uma pessoa amada e
querida fosse condenada ao inferno e eles ao paraíso. Perguntava a eles se
conseguiriam permanecer em paz no jardim bucólico divino, cantando com passarinhos
eternamente enquanto um irmão agonizava eternamente nas labaredas do Capiroto.
Primeiramente eu me pergunto que tipo de Deus condenaria
alguém a uma coisa tão bizarra! Mas essa não é a questão!
A pergunta que eu fazia aos meus queridos alunos era se eles
conseguiriam deixar essa pessoa, seja quem fosse, no inferno agonizando para
sempre caso eles fossem para o paraíso. Se o coração deles ficaria em paz, se
conseguiriam ser felizes enquanto os outros sofrem. De modo geral as religiões
não dizem que somos todos irmãos? Não dizem que temos que amar uns aos outros? Dei-me
conta de que essa fraternidade é relativa quando se trata da condenação eterna
sob o frágil argumento do livre arbítrio.
Pois bem, pra completar (lacrar!) eu dizia que se eu fosse
para o paraíso eu pediria uma audiência com Deus para pedir permissão para ir
ao inferno ajudar os meus irmãos... Quanta ingenuidade da minha parte!
De fato eu estava bem intencionada. Imbuída de um sentimento
de fraternidade, de coletivo, de amor ao próximo, me julgando perfeitamente (e
arrogantemente) "boa" e capaz de, se fosse o caso, descer aos
infernos para resgatar um irmão que sofre. Se fosse minha filha então, acabaria
com o Capeta a tridentada!
Hoje, um pouco menos delirante, reflito sobre isso de outra
maneira. Dei-me conta de que descemos ao inferno constantemente, sem que seja
necessário que venha um Deus bater um martelo sobre meus pecados.
No meu caso, sofro profundamente quando testemunho atos
atrozes contra pessoas que eu nem conheço, imagine quando alguém perto de mim
está sofrendo? Imagine quando um infortúnio acontece em minha vida... Me vi por
muito tempo empenhada em contagiar as pessoas a minha volta com as ideias da fraternidade,
da acolhida, da espiritualidade, do amor ao próximo, do respeito e consideração
com os sentimentos alheios, com a empatia e autoconhecimento. Passei anos
repetindo todos os tipos de argumentos possíveis com meus alunos e amigos a
respeito disso e sinceramente sinto que a maioria foi indiferente ou não
compreendeu. Talvez eu não tenha me expressado bem! Ou quem sabe o problema
seja a concorrência! Ou até quem sabe Rubem Alves tenha me dado a resposta há
tanto tempo com a sua metáfora da pipoca e eu só agora a compreendi realmente!
O fato é que compreendi que eu estava equivocada em
acreditar que eu poderia ajudar alguém indo aos infernos levar alguma luz, pois
dei-me conta de que muitos simplesmente não querem sair de lá. Não me acreditam
e até riem de mim enquanto gozam de seus prazeres efêmeros. Ou até mesmo me tacam
pedras, ofensas... Muitos dizem acreditar em Jesus, mas se o próprio aparecesse
diante deles não acreditariam e talvez rissem dele também dizendo: La vem ele
com esse papinho de amor ao próximo. Que piegas!
Talvez para essas pessoas Deus seja como um Zeus da
mitologia grega que esbanja poder lançando raios naqueles que despertam a sua
ira ou contrariam os seus caprichos.
Entendi que eu ainda não tenho cacife para ir aos infernos
(ou a lugar algum rsrsrs) "salvar" quem quer que seja de sua agonia, pois
estou tentando "salvar" a mim mesma da minha humanidade demasiada
humana. E que para além das metáforas existe alguém que não se esconde atrás de
teorias bonitinhas e que descobriu que quanto mais disponíveis estamos, mais
somos julgados e crucificados.
Cada consciência deve salvar a si mesma do individualismo,
do niilismo, do egoísmo, da confusão de sentido.
Eu realmente não
acredito nessas teorias de céu e inferno metafísicos. Mas acredito que
temos o céu e o inferno dentro de nós e que cada um precisa aprender a
distinguir esses mundos dentro de si e perceber que todos nós passamos pelo
inferno se quisermos chegar no paraíso. E que nenhuma teoria te ajuda na hora
do sufoco.
Quando adolescente eu tinha muitas ideias de
morte. Mas nunca por não querer viver. Mas por acreditar que há de existir em
algum lugar uma dimensão mais evoluída em que os seres de fato vivam a
fraternidade tão lindamente pregada por aqui nessa dimensão.